sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

ESTE MEU DESEJO DEVORA-ME (Desconstrução do poema "O Amor em Visita" de Herberto Helder)


Em cena um homem e uma mulher. O homem está no chão, com as mãos atadas. Junto a si, de pé, pisando-o com um dos pés, está a mulher. Homem na defensiva. Mulher violenta, com irónicas mudanças constantes de humor. Uma cadeira bem longe do Homem.

     
Ela: Olha bem para a minha face, aí de baixo.
Olha bem para mim, estás a ouvir, meu amor?

Vou-te cantar a música mais insuportável que fiz para ti.
     
(ajoelhando-se junto da cabeça dele, agarrando-lhe os cabelos) Sabes de que sou feita? De cabelos, de lábios, de ombros, de olhos penetrantes, de seios (ou mamas, como tu lhes chamas), de hálito com cheiro a terra!
Não sou feita de instinto maternal, de morte silenciosa, de pescoço de planta de tão frágil que possa ser.

(Ela dirigindo-se para a cadeira) Eu devo rasgar a minha face para que a tua viva?
Ou devo murmurar cada promessa tua, ó urna?


(Ela senta-se na cadeira) Eu sou aquilo que não se espera que seja.

Para ti já não se erguem mais os meus olhos!
Já não tenho o coração faminto que podia arder por ti…
Se gritei por ti, foi pura loucura…

Os meus pulsos vão-te fazer gritar!

Insistis-te numa violência profunda? Seu bárbaro…
E eu insisti em superstições, espantada com o teu fogo…

Fui mais que tua mãe!
Sabes o que és?
Um deus esmagado e acendido!
(E tão bom que é ver-te a arder…)

Ele: Ah, cabra!

Ela dá-lhe um estalo

Ela (murmurando): Shhhhh! Tu és o silêncio. Não podes gritar! (Ri-se)

Eu sei que és inocente. Eu sei que és cego, abstracto, pobre… eu sei! (Ri-se)

Desejo agarrar na tua cabeça áspera e dobrá-la para dentro do mar. Depois adivinho o teu rosto divino impresso no lodo… e então podes morrer…

(Ela dirigindo-se a ele com um lençol branco, tapando-o) Vais dormir num lençol mordido por bichos que se inclinam para dentro do teu sono…e não vais dormir! (ri-se, saindo de cena)


Texto desconstruído por  Ana Dionísio
Interpretado por Ana Dionísio e André Santos

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